17 de mar. de 2009

Fala Tu!

O jornalista e escritor Fausto Wolff, ao criticar a lógica da organização social sob o capitalismo, certa vez usou um argumento – na verdade uma pergunta – um tanto quanto inquietadora: “Quantos Beethovens matamos diariamente em nossas favelas?”...

Nossa fugidia elite e nossa débil classe média podem achar tola a pergunta do Fausto. Digo isso, pois levo em consideração o fato de que nossa burguesia não forma, por si só, nenhuma opinião a respeito do que quer que seja, pois, em tempos de neoliberalismo desenfreado, até opinião pode ser comprada... e eles, para não se cansarem, compram... Uma vez que os meios de comunicação de massa, estruturados em forma de cartéis e imbuídos da tarefa de conferir dignidade somente aos “consumidores potenciais”, decidem qual das realidades será consumida pelas pessoas, e a idéia de que na favela não há nada de bom (muito menos Beethovens) é a que prevalece.

O topo da pirâmide (e um pouco mais abaixo...), muito provavelmente, está errado. Não ouso dizer que Beethovens nasçam e morram corriqueiramente nas favelas ou em qualquer outro lugar (quem já ouviu a “nona” sabe do que falo...), mas, ao contrário do que pensam, a favela (e as periferias em geral) é solo fértil para, senão à criatividade, ao menos a seres humanos, digamos, mais coerentes do que aqueles que vemos batendo perna em shoppings.

...

Li uma vez (não lembro onde) que todo o legado da Grécia clássica, toda a sua criatividade, suas artes, sua cultura (que é tão magnífica que digo pros meus amigos que o tempo tem corrido para trás...), poderia ser fruto das características físicas do país. A Grécia é muito montanhosa, é cortada por rios, mares, sulcos, é salpicada de ilhas. Isso teria obrigado o povo grego a se virar, a ser bom em tudo para sobreviver. Já a necessidade de guarnecer-se contra os povos invasores deu-lhes a capacidade de ligar-se culturalmente, mesmo à além-mar.

Tive contato com essa teoria assistindo ao documentário Fala Tu, que apresenta a rotina de três jovens de favelas cariocas.

A analogia que faço das favelas do Rio com a Grécia não diz respeito ao terreno montanhoso que ambos têm em comum, e, sim, às características de vida, às dificuldades para obter o básico, à insegurança, à obrigação de unir-se em comunidade para fazer frente aos inimigos.

Impressionante ouvir-lhes [os jovens cariocas]. O vocabulário, a habilidade de valorar fatos, lidar com abstrações, dar nome a sentimentos, deixariam enrubescidas nossas celebridades televisivas vorazes pela unção midiática... Todos os três “big brothers” têm, embora cumpram humilhante carga horária de trabalho para sobreviver, ligação com a arte. Os três cantam, compõem músicas, sorriem, choram (como todo ser humano deveria fazer às vezes ao invés de brincar de fingir que é uma ferramenta impassível). A relação deles com a vida, embora esta lhes seja acre, é intensa, é íntima. A capacidade para filosofar faria inveja aos nossos articulistas de redações ar-condicionadas... Um dos jovens do documentário (marido de uma evangélica, diga-se) chegou à conclusão de que Deus existe, mas não age, largou o mundo, pois “se cansou”. Pode-se achar isso pouco, mas ponha essa teoria nas mãos de um Fausto Wolff (que fala – e escreve – a língua dos pobres) e verás o que é pensar a vida de dentro dela e não alheio, alienado de si, como anda nossa torpe classe média.

É sempre ruim ver tristeza (e cansaço) nos olhos de pessoas bacanas. Mas percebe-se também no povo brasileiro (no povo mesmo, exclua daí os robôs americanizados que aparecem na TV) a centelha daquilo que animou os grandes pensadores, os grandes artistas, os gênios loucos...

Mas Deus, que é brasileiro, criou com capricho o céu, a terra, os rios, o povo e...

“Se cansou”.

E os anjos seguem sendo pisoteados pelos demônios.




Texto escrito no meu antigo e extinto blog...

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